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“En
cada línea que escribo trato siempre, con mayor o menor fortuna, de invocar los
espíritus esquivos de la poesía, y trato de dejar en cada palabra el testimonio
de mi devoción por sus virtudes de adivinación, y por su permanente victoria
contra los sordos poderes de la muerte.”
(Gabriel Garcia Márquez - 1982)
Foi
numa conversa, na Confraria do Café
em Caruaru, ponto de encontro de poetas, curiosos, passantes e apreciadores da
aromática e preciosa bebida, que ouvi falar pela primeira vez, dos livros de
Gabriel Garcia Márquez. Um dos muitos freqüentadores do lugar falava com
entusiasmo dos singulares personagens de Cem
anos de Solidão, movida pela curiosidade comprei o livro. Fascinada pela
narrativa fiz a leitura em poucos dias e terminei de ler confusa com a
complicada genealogia dos Buendía,
mas até hoje, a assombrosa Macondo e
seus solitários habitantes fazem parte de minha memória literária.
Tempos
depois uma amiga emprestou-me O amor nos
Tempos do Cólera, narrativa do amor de Florentino Ariza por Firmina Daza. Nele
Garcia Márquez conta a história de um amor interrompido e carregado de
impossibilidades, mas que atravessa meio século para poder se apresentar como
possível. Da paixão vivida na adolescência restam cartas e a esperança de que a
espera não seja em vão. O amor de Florentino dura uma vida inteira, mas a
solidão, não.
Neste
romance o escritor colombiano escreveu a história do amor de seus próprios
pais: Gabriel Elígio Garciá era telegrafista, violinista, poeta e
forasteiro. Ainda muito jovem apaixonou-se por Luiza Márquez, porém, não
puderam viver essa paixão sem experimentar contrariedades. O Coronel Nicolas
Márquez, resolveu plantar distâncias entre os enamorados, enviando a filha para
a casa de parentes em uma viagem insana sob “sóis desnudos e aguaceiros
ferozes” para desviá-la dos caminhos do amor, porém, os apaixonados resolveram
manter viva a chama da paixão. Com a ajuda de amigos, o jovem telegrafista montou
uma rede de comunicação que alcançava sua amada onde ela estivesse.
Comecei a ler Viver para Contar em abril de 2009. Não
li de um fôlego só, intercalei com outras leituras e só agora avancei
velozmente por entre suas páginas. Eis, que leio o livro de memórias de Garcia
Márquez! O poético título enlaça sua vida e sua arte. Vida e narração
confundem-se no exercício poético de combater os poderes da morte. A mesma
morte enfrentada por Sherezade em seus contos noturnos.
Embrenhar-se na
leitura de Viver para Contar é ir ao
encontro dos lugares, tempos e personagens que habitam a trama magistral de sua
obra. Já nas primeiras páginas nos deparamos com Macondo, a aldeia imaginária onde vivem os filhos da linhagem dos
Buendía. Ele viu a palavra pela primeira vez no portal de uma fazenda de
bananeira em suas primeiras viagens com o avô. Não se preocupou muito em saber
seu significado, apenas gostou de sua ressonância poética. Cada palavra escrita
testemunha sua devoção pela virtude da adivinhação.
Gabriel nasceu
em Aracataca na casa dos avós maternos e lá viveu até os oitos anos. O ponto de
partida da narração de suas memórias é o reencontro com a velha casa dos avós,
justamente no momento em que sua mãe precisa vendê-la. Avançando na leitura
vamos encontrando as ressonâncias entre o viver e o contar. Para o escritor só
há uma casa no mundo e talvez por isso a casa dos Buendía guarde tantas
semelhanças com a casa de Aracataca. A disposição dos cômodos, a frondosa
castanheira, a oficina de ourivesaria, a sala de jantar e o jasmineiro são
comuns as duas casas.
Os peixinhos dourados de olhos esmeraldinos
que Aureliano Buendía fazia com tanto zelo e prazer na imaginária Macondo, eram feitos pelo Avô na casa de
Aracataca. O retrato da menina envolta em saias franzidas que não se assemelhava
ao retrato de uma bisavó esteve na sala da velha casa dos Márquez. Objetos,
histórias, memórias, percursos, personagens caminham com seus próprios pés na
narrativa de Garcia Márquez. E nós, seus leitores também não conseguimos
distinguir a linha que separa o real e o imaginário. Porventura, existe essa linha?
O livro de
memórias de Garcia Márquez é um acontecimento literário que envolve memória,
pensamento e sensibilidade. Sua escrita romanesca e autobiográfica articula as
invisíveis tramas do lembrar e do esquecer. Faz-se na arte de dizer os
itinerários possíveis entre o nascer, o comer e o morrer de inumeráveis homens
e mulheres afeitos aos assombros da solidão. Da solidão que nos pega de assalto
para que possamos recolher em palavras a vida que a gente recorda.
Recordar é uma
palavra de ressonâncias latinas. Vem de
re-cordis e quer dizer: tornar a passar pelo coração. A escrita de Gabriel se
assenta nesse retorno das coisas que passam pelo coração. Na impossibilidade de
contar tudo, ele conta o que recorda e como recorda. O recordar ritmiza sua
escrita e embala nossa leitura. O recordar leva-nos de encontro à escrita
histórica porque parece que já não temos dúvida de que historiadores e
romancistas são produtores de textos. Não temos dúvida de que qualquer tipo de
escritura da história, pertence ao gênero da narrativa.
Somos
narradores! Essa certeza toma forma nas obras clássicas de Michel de Certeau e
Paul Ricoeur, elas deixam claro que entre as narrativas de ficção e as narrativas
de história há algo em comum: um
mesmo modo de fazer agir dos personagens, uma mesma forma de construir a
temporalidade e uma mesma compreensão de causalidade. História e literatura
compartilham categorias fundamentais. A arte de escrever é comum às duas.
Portanto, partilhamos com Gabriel Garcia Márquez operações específicas que cruzam a arte
de escrever. Essa arte exige engenhosos percursos que nos levam da memória ao
texto, da trama a escritura, do vivido ao narrado. O texto feito trama abarca
desejos, sonhos, anseios, paixões, fúrias e nossos mais íntimos devaneios. Nele
espraiamos nossa solidão ancestral, porque não somos capazes de agüentar o
“peso esmagador de tanta coisa acontecida”. E assim, vivemos e contamos para
vencer os nefastos poderes da morte.
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