quarta-feira, 3 de junho de 2015

JOÃO E MANOEL: Gente que se despetala, gente que se abre aos desentendimentos gramaticais



Fonte: Pesquisa Google. http://www.elfikurten.com.br
http://www.revistabula.com/


Escrever é cheio de casca e de pérola.
Manoel de Barros

Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balance, de se remexerem dos lugares.
Guimarães Rosa


Leio João Guimarães Rosa e me enleio, com força e alegria, num infindável encantamento. Leio Manoel de Barros e me enleio, no esverdear do lodo grudado nas pedras do riachozinho, que atravessa entresonhos[1] de minha meninice. Travessias e mimetismo. Em Grande Sertão, ando entre tortas veredas e os perigos do viver, correndo o risco de topar com o diabo no meio do redemoinho. Ou será do caminho? Na Gramática expositiva do chão entro em contato com o barro do caminho marcado pelas patas da boiada que passou e que ainda vai passar. Modelo-me não para sentir, mas para ser as coisas pequeninas, desimportantes, rastejantes, que mourejam na imensidão das verdes águas pantaneiras. Lendo, sapejo-me, lesmo-me, visgo-me, embarro-me e enrio-me.
Que maquinaria, que mecanismo misterioso tictacteia no jeito de contar do João? E de que será feito o poetizar de Manoel? Terão eles feito um pacto com o Sem Nome? Sei não. O imenso contar de Rosa tem a teimosia do Sertão de ser em todo lugar. A poesia De Barros tem os pés e a boca cheios de musgos e o corpo esverdeado dos rumores e humores da liquidez do Pantanal. Um sertanejo. Um pantaneiro. Adjetivos que brilham, mas não dizem nada deles. João e Manoel são duas parteiras velhas, dois criadores de palavras. Dois criadores de mundos. As palavras deles são palavras novas, nascidas de outras, metamorfoseadas, desdizentes de coisas velhas e dizedoras de coisas no pleno acontecer.
O que é contar? O que é escrever? Parece-me que eles contam tudo aos avessos. Quem dá credito a um diplomata que fala sobre Diadorim e suas neblinas? Ou um poeta sendo sapo ou árvore? Contar é doidera, fantasiação. É encontrar o diabo no meio da rua, no meio do redemunho...[2] Mas qualquer sombrinha resfreca e o contar voa reto. O contar de Rosa principia vagaroso como se nonada ele quisesse, mas continua pela fidúcia nos quereres do ouvinte, que de tão ouvinte nem precisa falar. Contenta-se em ser presença. Ouvinte que mantém parentesco com João que ao se esquecer de si embolora de tanta narração, a ponto do leitor não esquecer que ele empareda-se com o narrador. Que ele anota em caderneta. Que tem leitura e doutoração, coisas que o narrador Riobaldo até inveja, embora ele mesmo já tenha visto de tudo e em folhas grandes de papel tracejado bonitos mapas.
O narrador Riobaldo é diverso de todo mundo. Sua neblina é Diadorim. Com Diadorim ele aprendeu a apreciar as belezas que encantam Manoel, como o vôo dos pássaros, o cheiro do campo com florzinhas, a música das cigarras, o céu azul-vivoso e os pássaros como o Manoelzinho da Croa, que sem Diadorim ele não teria sabido apreciar, mas matar com espingarda, porque nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera dos pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação.[3] Coisas que se empassarinham na poesia de Manoel e faz palavra amanhecer entre aves[4]. Olhares que causam sossego, que exigem carinhos. E o Manoelzinho da Croa sempre em casal, na galinholagem deles, às vezes davam beijos de biquinquim.[5]
Se em Rosa, viver é um descuido prosseguido[6], tanto nele quanto em Manoel contar e poetizar viram cuidados prosseguidos. Um contínuo lembrar e deslembrar. É um afogo de chegar, chegar e perto estar, tirar instantâneos das coisas.[7] O contar de Riobaldo tem nascedouro na recordação sempre quente, retomada, remendada. De continuação inventada. Cheia dos traquejos de quem se mistura na invenção e no real da vida, sem adquirir sabenças em desmisturar. A vida disfarça? A vida inventa? Na invenção os disfarces cabem mais porque o real tem menos formato; por isso viver é muito perigoso, é assim como pelejar por exato, viver é etcétera.[8] Imagino que vida e a invenção são semelhantes ao Rio Desbocado de João: definitivo, cabal, nunca há de ser.[9]
Minha tarefa de escrevinhadora, pertencente ao campo da história, devia ser dizer como andava o mundo, o sertão de João, o Brasil, o pantanal de Manoel no presente da escrita deles, mas acabo sofrendo da angústia de outro criador de mundos, o italiano Ítalo Calvino, quando esteve escrevendo sobre exatidão, ele disse: às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever.[10] Por isso, desando da história e busco às poesias, cujas palavras me trazem novidades e desejos de que meu corpo faça uma curva diante das flores.[11]
Parece-me que minha escrita está tomando o rumo de estabelecer correlações entre João e Manoel, pois não vem ao caso proceder comparações. Desejo meu mesmo, é aprender a erra a língua, emparelhar e desemparelhar os dizeres dos dois, porque poeta é sempre um ser escaleno.[12] Desigual e descompassado, nossos dois guardadores de palavras, produzem assombros poéticos e arejam a linguagem. Como este de Manoel, é ínvio e ardente o que o sabia diz./e tem espessura de amor[13], ou este outro de João: o vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo.[14]
A matéria da prosa roseana vem de um maço de estórias de toda raça de artes e estratagemas.[15] E a matéria da poética manoelina? É feita de tudo aquilo que a nossa/civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia/os loucos de água é estandarte/servem demais.[16] Demasias do dizer de quem tem narração fina, bordada em bastidor e de quem carrega água na peneira, de quem escreve nos meio dos contrários. Grande Sertão veredas foi lançado em maio de 1956, quando nós, vivíamos entre prognósticos diversos: o desaparecimento do sertão e a construção de Brasília, onde antes reinavam buritizais, seria erguida nossa definitiva modernidade. Profecias. Mas na prosa de João o sertão rendeu encantos e estranhezas.
Manoel escapou por metáforas nos anos em que esteve em colégio interno. Um padre disse: - não presta pra nada; há de ser poeta! Aí ele aprendeu a desobedecer na escrita, a tocar nos ínfimos, a reaprender a errar a língua. Tornou-se um buscador de desvios, um atalhador de caminhos, um ser nas coisas disfarçado e com a boca impregnada de árvores. Que trata com trastes. E contrastes[17]. Um sujeito tímido e remendador. Não biografável ou talvez seja. Mas como biografar um sujeito que:
Usava um dicionário ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
e achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.[18] 


O método de escrita de Manoel lembra o método da montagem usado por Walter Benjamin em seu Passagens. Manoel anota tudo, não tem métodos, aleatoriamente vai enchendo seus cadernos com desvios fonéticos, semânticos, estruturais e achados em leituras. Pessoas promíscuas de água e de pedra[19], inclusive, caracol passeando na parede[20]. Mas Manoel mexe com as palavras. Retira-as do caos dos seus 30 ou cinqüenta cadernos, corta as palavras compridas, porque o verso balança melhor com palavras curtas.[21] Ritmiza e emenda palavras, expõe rupturas e estrutura versos, despreza o real porque ele exclui a fantasia[22] e só dá por acabado um poema se a linguagem conteve o assunto nas suas devidas escolhas.[23] Sua escrita se faz de montagem de fragmentos, nela o restolho e o cisco ascendem.
Penso que Manoel ensina que escrever não estabelece correlações com a noção de inspiração, mas muito mais com a noção de paciência, de esperar que as palavras sedimentem, adquiram lodo, para que nos aproximemos da noção de exatidão como gostaria Ítalo Calvino. Em primeiro lugar, precisamos de um projeto de obra bem definido e calculado[24], em segundo lugar, evocar imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis[25] e em terceiro lugar, fazer uso de uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.[26] afinal, escrever é expressar com palavras coisas visuais. João e Manoel são versados nesse oficio.
Grande Sertão: veredas é um romance. Orhan Pamuk defende a ideia de que um romance é uma segunda vida. Ao lermos um romance buscamos atentamente o centro secreto do romance, mas esse centro encontra-se entre o real e o imaginário.[27] Ainda segundo Orhan Pamuk romancistas e leitores partilham de dois tipos de sensibilidades, oscilando entre a ingenuidade e a reflexão. Há escritores e leitores ingênuos, estes não se dão conta das técnicas que utilizam; escrevem espontaneamente, como se executassem um ato perfeitamente natural, alheios as operações e aos cálculos que seus cérebros efetuam e ao fato de que estão usando as marchas, os freios e os botões que a arte do romance lhes fornece.[28] No entanto, os leitores e escritores reflexivos são aqueles que ficam fascinados com a artificialidade do texto e seu malogro em alcançar a realidade e que dão muita atenção aos métodos empregados na escrita do romance e à maneira como nossa mente funciona quando lemos.[29]
Uma boa dose de ingenuidade é fundamental para que escritores e leitores continuem acreditando nas histórias que contam e lêem. Mas uma boa dose de reflexão é fundamental para que saibamos que o ato de escrever é produto de uma arte e de uma técnica.[30] Mas perder a ingenuidade não tem nada a ver com perder o encantamento ou ficar imune às alegrias de ler um romance[31]. Mas qual o centro em Grande Sertão: veredas? Penso que seja a história de amor entre Riobaldo e Diadorim. A história é narrada por Riobaldo, o que ele conta são minúcias do tempo em que foi jagunço: por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade?[32]
Engana-se quem pensa que Riobaldo debulha todo o passado em seu contar, ele é narrador que escolhe, que seleciona o que lhe pertence como passado, conta pelos alto, desemendado, mas não é por disfarçar.[33] É apenas seu jeito de contar, costurando histórias que ele não pode deslembrar:[34] a vida da gente não é facilmente entendível, por isso, narrá-la requer dizer dificultoso, muito entrançado.[35]
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, sé mesmo sendo as coisas de rasa importância. De caca vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho ,assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.[36]
Para contar as coisas de profunda importância, que preenche o coração com coisas movimentadas, [37] seu debulhar de histórias é vagaroso. Carece que fique muito bem explicado que ele nunca teve inclinações para os vícios desencontrados.[38] É preciso que o ouvinte tenha paciência, vá ouvindo, adivinhando as artes que vieram depois de um bem querer que brotava do ar que Riobaldo respirava e dos sonhos de suas noites: astúcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris.[39] Mas a natureza da gente é sempre versável em amizade amor. Contar é dificultoso porque remexe e balança os lugares que parecem estáveis e as demasias de dizer sobe com as lembranças da mocidade.[40]
A história se espalha por mais de seiscentas páginas, mais o centro do romance, vai sendo anunciado, previsto na narração miúda, das coisas que Riobaldo, não pode achar esquecimento.
Pressentimentos e arrepios de imaginar:  
O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo do seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos, meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida? Ah, Diadorim...E tantos anos já se passaram.[41]   

Tudo exige do leitor sabenças de rastreador. No meio da história, quando o ouvinte já entrou na prática de limo[42], e aprendeu o silêncio das pedras, o narrador diz, que já podia botar um ponto final, mas o que narrou não foi à-tôa, só apontação principal, ele remenda os retalhos da narrativa e desembrulha o que foi o correr da vida, sem poupar contrários, detalhes, desamargados dos sonhos, borboletas vistosas, aprontamentos de guerra, sossegos, assombros da noite. Retardos do relatar. Adiamentos da hora de contar as coisas muito estranhas[43] acontecidas nos fundos do Sertão que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez.[44] Assim, ele prepara o ouvinte para o fim terrível, terrivelmente,[45] que o leitor fareja em Diadorim, segredo maior de Riobaldo, que mesmo tudo quando já estava pendurado para o fim[46], olhou e desentendeu que Diadorim era mulher. Na surpresa entendeu os pressentimentos do amor. Travessia que só no fim a gente divisa à metade. Fim que foi.[47] Porque sertão é uma espera enorme[48] e ao levantar do dia: auroras e travessias.

Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.[49]

No entanto, espero ter aproximado João e Manoel mesmo que por instinto e por apalpos.[50] Ítalo Calvino convenceu-me que escrever prosa e poesia em nada difere, não me refiro ao debate sobre ficção e realidade, mas aos mecanismos da escrita, válidos também para nós, historiadores, e que implica numa paciente procura pelos elementos dão insubstituíveis dão ritmo e leveza à expressão verbal, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável.[51] Nem João,  nem Manoel podem ser chamados de ingênuos pois, a prosa de um e a poesia do outro entesouram frases de pensar. A gente tem que aprender com eles, a gente tem que pensar com eles.




[1] Palavra pescada em BORGES, Jorge Luis. Ficções. Companhia das Letras, 2011.
[2] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011, p. 27.
[3] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 159.
[4] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1990, p. 318.
[5] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 159.
[6] Idem, ibidem, p. 86.
[7] Idem, ibidem, p. 89.
[8] Idem, ibidem, p. 110
[9] BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 201.
[10] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 83.
[11] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 39.
[12] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 314.
[13] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 178.
[14] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 306.
[15] Idem, ibidem. p.137.
[16] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 146.
[17] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 331.
[18] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 193.
[19] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 333.
[20] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 332.
[21] Idem, ibidem. 334.
[22] Idem, ibidem.
[23] Idem, ibidem.
[24] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. op. cit. p. 71.
[25] Idem, ibidem, p. 71.
[26] Idem, ibidem, p. 72.
[27] Consultar o interessante ensaio do escrito turco,  PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental.  São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[28] PAMUK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. Op. cit. p. 16.
[29] Idem, ibidem, p. 16.
[30]Idem, ibidem, p. 52.
[31] Idem, ibidem, p. 45.
[32] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 43.
[33] Idem, ibidem, p. 114.
[34] Idem, ibidem, p. 120.
[35] Idem, ibidem, p. 116.
[36] Idem, ibidem, p. 114-115.
[37] Idem, ibidem, p. 136.
[38] Idem, ibidem, p. 162.
[39] Idem, ibidem, p. 66.
[40] Idem, ibidem, p. 208.
[41] Idem, ibidem, p. 207.
[42] BARROS, Manoel de. Poesia completa. op. cit. p. 121.
[43] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. op. cit. p. 397.
[44] Idem, ibidem, p. 433.
[45] Idem, ibidem, p. 574.
[46] Idem, ibidem, p. 609.
[47] Idem, ibidem, p. 616.
[48] Idem, ibidem, p. 591.
[49] Idem, ibidem, p. 616.
[50] BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. op. cit. 337.
[51] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. op. cit. p. 61.