sábado, 23 de maio de 2015

Os caminhos das narrativas entre o viver e o contar

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“En cada línea que escribo trato siempre, con mayor o menor fortuna, de invocar los espíritus esquivos de la poesía, y trato de dejar en cada palabra el testimonio de mi devoción por sus virtudes de adivinación, y por su permanente victoria contra los sordos poderes de la muerte.”

(Gabriel Garcia Márquez - 1982)



Foi numa conversa, na Confraria do Café em Caruaru, ponto de encontro de poetas, curiosos, passantes e apreciadores da aromática e preciosa bebida, que ouvi falar pela primeira vez, dos livros de Gabriel Garcia Márquez. Um dos muitos freqüentadores do lugar falava com entusiasmo dos singulares personagens de Cem anos de Solidão, movida pela curiosidade comprei o livro. Fascinada pela narrativa fiz a leitura em poucos dias e terminei de ler confusa com a complicada genealogia dos Buendía, mas até hoje, a assombrosa Macondo e seus solitários habitantes fazem parte de minha memória literária.
Tempos depois uma amiga emprestou-me O amor nos Tempos do Cólera, narrativa do amor de Florentino Ariza por Firmina Daza. Nele Garcia Márquez conta a história de um amor interrompido e carregado de impossibilidades, mas que atravessa meio século para poder se apresentar como possível. Da paixão vivida na adolescência restam cartas e a esperança de que a espera não seja em vão. O amor de Florentino dura uma vida inteira, mas a solidão, não.
Neste romance o escritor colombiano escreveu a história do amor de seus próprios pais: Gabriel Elígio Garciá era telegrafista, violinista, poeta e forasteiro. Ainda muito jovem apaixonou-se por Luiza Márquez, porém, não puderam viver essa paixão sem experimentar contrariedades. O Coronel Nicolas Márquez, resolveu plantar distâncias entre os enamorados, enviando a filha para a casa de parentes em uma viagem insana sob “sóis desnudos e aguaceiros ferozes” para desviá-la dos caminhos do amor, porém, os apaixonados resolveram manter viva a chama da paixão. Com a ajuda de amigos, o jovem telegrafista montou uma rede de comunicação que alcançava sua amada onde ela estivesse.
Comecei a ler Viver para Contar em abril de 2009. Não li de um fôlego só, intercalei com outras leituras e só agora avancei velozmente por entre suas páginas. Eis, que leio o livro de memórias de Garcia Márquez! O poético título enlaça sua vida e sua arte. Vida e narração confundem-se no exercício poético de combater os poderes da morte. A mesma morte enfrentada por Sherezade em seus contos noturnos.
Embrenhar-se na leitura de Viver para Contar é ir ao encontro dos lugares, tempos e personagens que habitam a trama magistral de sua obra. Já nas primeiras páginas nos deparamos com Macondo, a aldeia imaginária onde vivem os filhos da linhagem dos Buendía. Ele viu a palavra pela primeira vez no portal de uma fazenda de bananeira em suas primeiras viagens com o avô. Não se preocupou muito em saber seu significado, apenas gostou de sua ressonância poética. Cada palavra escrita testemunha sua devoção pela virtude da adivinhação.
Gabriel nasceu em Aracataca na casa dos avós maternos e lá viveu até os oitos anos. O ponto de partida da narração de suas memórias é o reencontro com a velha casa dos avós, justamente no momento em que sua mãe precisa vendê-la. Avançando na leitura vamos encontrando as ressonâncias entre o viver e o contar. Para o escritor só há uma casa no mundo e talvez por isso a casa dos Buendía guarde tantas semelhanças com a casa de Aracataca. A disposição dos cômodos, a frondosa castanheira, a oficina de ourivesaria, a sala de jantar e o jasmineiro são comuns as duas casas.
 Os peixinhos dourados de olhos esmeraldinos que Aureliano Buendía fazia com tanto zelo e prazer na imaginária Macondo, eram feitos pelo Avô na casa de Aracataca. O retrato da menina envolta em saias franzidas que não se assemelhava ao retrato de uma bisavó esteve na sala da velha casa dos Márquez. Objetos, histórias, memórias, percursos, personagens caminham com seus próprios pés na narrativa de Garcia Márquez. E nós, seus leitores também não conseguimos distinguir a linha que separa o real e o imaginário. Porventura, existe essa linha?
O livro de memórias de Garcia Márquez é um acontecimento literário que envolve memória, pensamento e sensibilidade. Sua escrita romanesca e autobiográfica articula as invisíveis tramas do lembrar e do esquecer. Faz-se na arte de dizer os itinerários possíveis entre o nascer, o comer e o morrer de inumeráveis homens e mulheres afeitos aos assombros da solidão. Da solidão que nos pega de assalto para que possamos recolher em palavras a vida que a gente recorda.
Recordar é uma palavra de ressonâncias latinas.  Vem de re-cordis e quer dizer: tornar a passar pelo coração. A escrita de Gabriel se assenta nesse retorno das coisas que passam pelo coração. Na impossibilidade de contar tudo, ele conta o que recorda e como recorda. O recordar ritmiza sua escrita e embala nossa leitura. O recordar leva-nos de encontro à escrita histórica porque parece que já não temos dúvida de que historiadores e romancistas são produtores de textos. Não temos dúvida de que qualquer tipo de escritura da história, pertence ao gênero da narrativa.
Somos narradores! Essa certeza toma forma nas obras clássicas de Michel de Certeau e Paul Ricoeur, elas deixam claro que entre as narrativas de ficção e as narrativas de história há algo em comum: um mesmo modo de fazer agir dos personagens, uma mesma forma de construir a temporalidade e uma mesma compreensão de causalidade. História e literatura compartilham categorias fundamentais. A arte de escrever é comum às duas.
Portanto, partilhamos com Gabriel Garcia Márquez operações específicas que cruzam a arte de escrever. Essa arte exige engenhosos percursos que nos levam da memória ao texto, da trama a escritura, do vivido ao narrado. O texto feito trama abarca desejos, sonhos, anseios, paixões, fúrias e nossos mais íntimos devaneios. Nele espraiamos nossa solidão ancestral, porque não somos capazes de agüentar o “peso esmagador de tanta coisa acontecida”. E assim, vivemos e contamos para vencer os nefastos poderes da morte.




segunda-feira, 18 de maio de 2015

Entre territórios de sonhos e flores do esquecimento


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“aquela vila tem o viver de um rio.
 Manso e vagaroso, mas com fatais enchentes
[...]
O mar é habilidoso desenhador de ausências
[...]
Que o amor acontece para a gente desacontecer."


Mia Couto


Adentrei na labiríntica narração de Mia Couto, escritor moçambicano, por meio de seu livro Terra Sonâmbula. Acertada iniciação, pois foi seu modo impressionante de encaixar histórias umas nas outras que me orientou na leitura de Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Ao leve passar das plenas páginas, envolvi-me nos mistérios que cercam os viventes da enevoada Vila Cacimba.
Fiz uma primeira leitura, meio desprentesiosa, mas suficiente para passar algumas horas do dia com o coração e a mente ocupados com a intrigante rede de histórias. Enveredei por uma segunda leitura com olhos de exploradora, armada com perguntas e em busca de respostas.O trabalho de narrar empreendido por Mia Couto pode ser comparado ao trabalho da bordadeira que, em seu ofício entrelaça linhas de diferentes cores. Os fios da urdidura dispostos no sentido vertical sustentam os fios da trama passados no sentido transversal. Mas pronto o bordado, urdidura e trama de tão indispensável uma a outra se confundem. Evidencia-se o bordado.
O bordado-escrita de Mia Couto coloca em relevo um conjunto de personagens arrematados com os fios da névoa que cobre Vila Cacimba. Cada um tresandarilha, em seu próprio mundo e nas fronteiras do acontecer. Cada um borda-se de verdades, mentiras, sonhos, lembranças, esquecimentos. Com essas linhas multicores e diferentes são feitos Sidónio Rosa, o casal Dona Munda e Bartolomeu Sozinho, o administrador Alfredo Suecelência e a ausente Deolinda.
Sidónio Rosa, médico português. Homem branco e estrangeiro nas profundezas da África. Chega a Vila Cacimba em busca das pegadas de Deolinda, mulher africana que conhecera em um congresso na cidade de Lisboa. Instala-se no lugarejo sob o pretexto de cuidar dos habitantes atacados por uma estranha doença. Para o médico é apenas um surto de meningite. Mas os cacimbeiros acreditam que os tresandarilhos – assim chamados pelo povo porque quando atingidos pela doença saem às ruas com ares de enlouquecidos, agitando os braços como se quisessem voar – estão possuídos por espíritos.
Vila Cacimba é um lugar onde todos vivem em solidão, e “as famílias são caixas de história, segredos e mentiras”. Por isso Dona Munda Sozinho é mulher que vive a engavetar segredos. Guardadora de tristezas. Choradeira de acertadas horas. Dona de palavreados certos que têm o poder de deixar Bartolomeu vergado. Cuidadora dos espelhos e das belezas quase extintas. Inventora de outras tantas mulheres costuradas entre os desejos do marido, os seus próprios desejos e sua imaginação. Os desejos de Dona Munda são como os segredos de Vila Cacimba, ferida aberta e nunca cicratizada.
Bartolomeu Sozinho, mecânico reformado que vive entre os sonhos e as lembranças do período colonial. Parece sofredor de graves doenças. Na penumbra de seu quarto recebe visitas diárias do médico estrangeiro. O velho tem o peito ondeado de saudades dos tempos coloniais. Tempos em que atravessara profundos mares quando fez parte da tripulação do paquete Infante D. Henrique. Suas idas e vindas deixou-lhe de herança enormes nostalgias, solidões sem limites e um viver de lonjuras.
Dona Munda e Bartolomeu são os pais de Deolinda. Por isso o médico assume diariamente dedicadas atenções ao seu paciente particular. Suas visitas a casa dos Sozinhos vão desencaixando os segredos e as mentiras inquietas. Sua mentira salta de si mesmo e da pasta esquecida na casa de Bartolomeu.
A narrativa vai-se constituindo entre mentiras e verdades. O que na versão de um personagem nos parece mentira, cujo destino seria o confronto com a verdade é apenas uma outra verdade. Avançar na leitura e finalmente chegar as últimas páginas do livro não assegura que saberemos qual personagem nos presenteará com a “verdade dos fatos”.
 Enquanto Sidónio embrenha-se em territórios sagrados, a desvendar segredos, Deolinda alheia-se em destino ignorado. Misteriosas cartas entregues pelas mãos de Dona Munda trazem notícias de seu sempre adiado retorno. Nestas cartas, Deolinda pede que Sidónio cuide de seus pais e que lhes dê alguns presentes. Na relação entre o casal e o médico estabelece-se negociações onde cada um pretende obter proveitosas condições em defesa de seus interesses imediatos...
Defendendo seus desejos e interesses os personagens tramam-se e inventam-se em suposições do existir. Para receber atenção e presentes do estrangeiro, Bartolomeu e Dona Munda caligrafam falseadas cartas. Afinal, a vida de Bartolomeu caligrafara-se desde os tempos do namoro. O pedido de casamento, o dote, o noivado, tudo havia carecido da formalidade da escrita. Assim, desenvolvera devoção por qualquer papel escrito. A escrita lhe trazia lembranças e o nunca remediado descanso dos sonhos. Bartolomeu queria curar-se de sonhar.
Mas não eram apenas Dona Munda e Bartolomeu que desviavam verdades e escureciam segredos. Sidónio Rosa também era dono de interesses, mentiras e segredos. Ele “ainda” não era quem dizia ser. Ele não mentia, nem falsificava escrituras, era a própria mentira. Solitário e sem regresso estava mesmo era a desacontecer.
À medida que avancei na sinuosa narrativa atravessei fronteiras e adentrei nos territórios de outras leituras. Afinal, não é a leitura um exercício do desacontecer? Na poesia O Leitor*, Rilke escreve que ao baixar seu rosto para o livro, nem sequer a mãe (do leitor) estaria segura de que aquele que ler seja seu filho. Pois, ao ler, o leitor mergulha em sua própria sombra e alheio às horas que passam não se assegura do quanto se desvaneceu. Mas quando bruscamente levanta os olhos da página, seus olhos, são olhos dadivosos que carrega sobre si os aconteceres do livro.
No brusco movimento de tirar os olhos do livro, ele se depara com um mundo pleno e pronto. Seus traços que antes da leitura estavam ordenados ficaram alterados para sempre. É isso que Mia Couto faz com seus leitores, altera seus traços. Desordena-os para sempre! Porque sua escrita não se faz do ordenado e previsível, mas de ruídos, silêncios, cortes, pausas, dúvidas, escuros, embriagues, entorpecimentos, ausências e principalmente de incertezas.



*Poema de Rilke intitulado The Leser – o leitor pertence ao livro A outra parte dos novos poemas publicado em 1908.