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“aquela vila tem o viver de um rio.
Manso e vagaroso,
mas com fatais enchentes
[...]
O mar é habilidoso
desenhador de ausências
[...]
Que o amor acontece para a gente desacontecer."
Mia Couto
Adentrei na labiríntica narração de Mia
Couto, escritor moçambicano, por meio de seu livro Terra Sonâmbula. Acertada iniciação, pois foi seu modo impressionante
de encaixar histórias umas nas outras que me orientou na leitura de Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Ao
leve passar das plenas páginas, envolvi-me nos mistérios que cercam os viventes
da enevoada Vila Cacimba.
Fiz uma primeira leitura, meio desprentesiosa,
mas suficiente para passar algumas horas do dia com o coração e a mente
ocupados com a intrigante rede de histórias. Enveredei por uma segunda leitura com
olhos de exploradora, armada com perguntas e em busca de respostas.O trabalho de narrar empreendido por Mia
Couto pode ser comparado ao trabalho da bordadeira que, em seu ofício entrelaça
linhas de diferentes cores. Os fios da urdidura dispostos no sentido vertical
sustentam os fios da trama passados no sentido transversal. Mas pronto o
bordado, urdidura e trama de tão indispensável uma a outra se confundem.
Evidencia-se o bordado.
O bordado-escrita de Mia Couto coloca em
relevo um conjunto de personagens arrematados com os fios da névoa que cobre
Vila Cacimba. Cada um tresandarilha, em seu próprio mundo e nas fronteiras do
acontecer. Cada um borda-se de verdades, mentiras, sonhos, lembranças,
esquecimentos. Com essas linhas multicores e diferentes são feitos Sidónio
Rosa, o casal Dona Munda e Bartolomeu Sozinho, o administrador Alfredo
Suecelência e a ausente Deolinda.
Sidónio Rosa, médico português. Homem branco
e estrangeiro nas profundezas da África. Chega a Vila Cacimba em busca das
pegadas de Deolinda, mulher africana que conhecera em um congresso na cidade de
Lisboa. Instala-se no lugarejo sob o pretexto de cuidar dos habitantes atacados
por uma estranha doença. Para o médico é apenas um surto de meningite. Mas os
cacimbeiros acreditam que os tresandarilhos – assim chamados pelo povo porque
quando atingidos pela doença saem às ruas com ares de enlouquecidos, agitando
os braços como se quisessem voar – estão possuídos por espíritos.
Vila Cacimba é um lugar onde todos vivem em
solidão, e “as famílias são caixas de história, segredos e mentiras”. Por isso
Dona Munda Sozinho é mulher que vive a engavetar segredos. Guardadora de
tristezas. Choradeira de acertadas horas. Dona de palavreados certos que têm o
poder de deixar Bartolomeu vergado. Cuidadora dos espelhos e das belezas quase
extintas. Inventora de outras tantas mulheres costuradas entre os desejos do
marido, os seus próprios desejos e sua imaginação. Os desejos de Dona Munda são
como os segredos de Vila Cacimba, ferida aberta e nunca cicratizada.
Bartolomeu Sozinho, mecânico reformado que
vive entre os sonhos e as lembranças do período colonial. Parece sofredor de
graves doenças. Na penumbra de seu quarto recebe visitas diárias do médico
estrangeiro. O velho tem o peito ondeado de saudades dos tempos coloniais.
Tempos em que atravessara profundos mares quando fez parte da tripulação do
paquete Infante D. Henrique. Suas
idas e vindas deixou-lhe de herança enormes nostalgias, solidões sem limites e
um viver de lonjuras.
Dona Munda e Bartolomeu são os pais de
Deolinda. Por isso o médico assume diariamente dedicadas atenções ao seu
paciente particular. Suas visitas a casa dos Sozinhos vão desencaixando os
segredos e as mentiras inquietas. Sua mentira salta de si mesmo e da pasta
esquecida na casa de Bartolomeu.
A narrativa vai-se constituindo entre
mentiras e verdades. O que na versão de um personagem nos parece mentira, cujo
destino seria o confronto com a verdade é apenas uma outra verdade. Avançar na
leitura e finalmente chegar as últimas páginas do livro não assegura que
saberemos qual personagem nos presenteará com a “verdade dos fatos”.
Enquanto
Sidónio embrenha-se em territórios sagrados, a desvendar segredos, Deolinda
alheia-se em destino ignorado. Misteriosas cartas entregues pelas mãos de Dona
Munda trazem notícias de seu sempre adiado retorno. Nestas cartas, Deolinda pede
que Sidónio cuide de seus pais e que lhes dê alguns presentes. Na relação entre
o casal e o médico estabelece-se negociações onde cada um pretende obter
proveitosas condições em defesa de seus interesses imediatos...
Defendendo seus desejos e interesses os
personagens tramam-se e inventam-se em suposições do existir. Para receber
atenção e presentes do estrangeiro, Bartolomeu e Dona Munda caligrafam
falseadas cartas. Afinal, a vida de Bartolomeu caligrafara-se desde os tempos
do namoro. O pedido de casamento, o dote, o noivado, tudo havia carecido da
formalidade da escrita. Assim, desenvolvera devoção por qualquer papel escrito.
A escrita lhe trazia lembranças e o nunca remediado descanso dos sonhos.
Bartolomeu queria curar-se de sonhar.
Mas não eram apenas Dona Munda e Bartolomeu
que desviavam verdades e escureciam segredos. Sidónio Rosa também era dono de
interesses, mentiras e segredos. Ele “ainda” não era quem dizia ser. Ele não
mentia, nem falsificava escrituras, era a própria mentira. Solitário e sem
regresso estava mesmo era a desacontecer.
À medida que avancei na sinuosa narrativa
atravessei fronteiras e adentrei nos territórios de outras leituras. Afinal,
não é a leitura um exercício do desacontecer? Na poesia O Leitor*, Rilke escreve que
ao baixar seu rosto para o livro, nem sequer a mãe (do leitor) estaria segura de
que aquele que ler seja seu filho. Pois, ao ler, o leitor mergulha em sua
própria sombra e alheio às horas que passam não se assegura do quanto se
desvaneceu. Mas quando bruscamente levanta os olhos da página, seus olhos, são
olhos dadivosos que carrega sobre si os aconteceres do livro.
No brusco movimento de tirar os olhos do
livro, ele se depara com um mundo pleno e pronto. Seus traços que antes da
leitura estavam ordenados ficaram alterados para sempre. É isso que Mia Couto
faz com seus leitores, altera seus traços. Desordena-os para sempre! Porque sua
escrita não se faz do ordenado e previsível, mas de ruídos, silêncios, cortes, pausas,
dúvidas, escuros, embriagues, entorpecimentos, ausências e principalmente de incertezas.
*Poema de Rilke intitulado The Leser – o leitor pertence ao livro A outra parte dos novos poemas publicado
em 1908.
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