segunda-feira, 18 de maio de 2015

Entre territórios de sonhos e flores do esquecimento


Imagem: http://www.companhiadasletras.com.br/images/livros/12649_g.jpg

“aquela vila tem o viver de um rio.
 Manso e vagaroso, mas com fatais enchentes
[...]
O mar é habilidoso desenhador de ausências
[...]
Que o amor acontece para a gente desacontecer."


Mia Couto


Adentrei na labiríntica narração de Mia Couto, escritor moçambicano, por meio de seu livro Terra Sonâmbula. Acertada iniciação, pois foi seu modo impressionante de encaixar histórias umas nas outras que me orientou na leitura de Venenos de Deus, Remédios do Diabo. Ao leve passar das plenas páginas, envolvi-me nos mistérios que cercam os viventes da enevoada Vila Cacimba.
Fiz uma primeira leitura, meio desprentesiosa, mas suficiente para passar algumas horas do dia com o coração e a mente ocupados com a intrigante rede de histórias. Enveredei por uma segunda leitura com olhos de exploradora, armada com perguntas e em busca de respostas.O trabalho de narrar empreendido por Mia Couto pode ser comparado ao trabalho da bordadeira que, em seu ofício entrelaça linhas de diferentes cores. Os fios da urdidura dispostos no sentido vertical sustentam os fios da trama passados no sentido transversal. Mas pronto o bordado, urdidura e trama de tão indispensável uma a outra se confundem. Evidencia-se o bordado.
O bordado-escrita de Mia Couto coloca em relevo um conjunto de personagens arrematados com os fios da névoa que cobre Vila Cacimba. Cada um tresandarilha, em seu próprio mundo e nas fronteiras do acontecer. Cada um borda-se de verdades, mentiras, sonhos, lembranças, esquecimentos. Com essas linhas multicores e diferentes são feitos Sidónio Rosa, o casal Dona Munda e Bartolomeu Sozinho, o administrador Alfredo Suecelência e a ausente Deolinda.
Sidónio Rosa, médico português. Homem branco e estrangeiro nas profundezas da África. Chega a Vila Cacimba em busca das pegadas de Deolinda, mulher africana que conhecera em um congresso na cidade de Lisboa. Instala-se no lugarejo sob o pretexto de cuidar dos habitantes atacados por uma estranha doença. Para o médico é apenas um surto de meningite. Mas os cacimbeiros acreditam que os tresandarilhos – assim chamados pelo povo porque quando atingidos pela doença saem às ruas com ares de enlouquecidos, agitando os braços como se quisessem voar – estão possuídos por espíritos.
Vila Cacimba é um lugar onde todos vivem em solidão, e “as famílias são caixas de história, segredos e mentiras”. Por isso Dona Munda Sozinho é mulher que vive a engavetar segredos. Guardadora de tristezas. Choradeira de acertadas horas. Dona de palavreados certos que têm o poder de deixar Bartolomeu vergado. Cuidadora dos espelhos e das belezas quase extintas. Inventora de outras tantas mulheres costuradas entre os desejos do marido, os seus próprios desejos e sua imaginação. Os desejos de Dona Munda são como os segredos de Vila Cacimba, ferida aberta e nunca cicratizada.
Bartolomeu Sozinho, mecânico reformado que vive entre os sonhos e as lembranças do período colonial. Parece sofredor de graves doenças. Na penumbra de seu quarto recebe visitas diárias do médico estrangeiro. O velho tem o peito ondeado de saudades dos tempos coloniais. Tempos em que atravessara profundos mares quando fez parte da tripulação do paquete Infante D. Henrique. Suas idas e vindas deixou-lhe de herança enormes nostalgias, solidões sem limites e um viver de lonjuras.
Dona Munda e Bartolomeu são os pais de Deolinda. Por isso o médico assume diariamente dedicadas atenções ao seu paciente particular. Suas visitas a casa dos Sozinhos vão desencaixando os segredos e as mentiras inquietas. Sua mentira salta de si mesmo e da pasta esquecida na casa de Bartolomeu.
A narrativa vai-se constituindo entre mentiras e verdades. O que na versão de um personagem nos parece mentira, cujo destino seria o confronto com a verdade é apenas uma outra verdade. Avançar na leitura e finalmente chegar as últimas páginas do livro não assegura que saberemos qual personagem nos presenteará com a “verdade dos fatos”.
 Enquanto Sidónio embrenha-se em territórios sagrados, a desvendar segredos, Deolinda alheia-se em destino ignorado. Misteriosas cartas entregues pelas mãos de Dona Munda trazem notícias de seu sempre adiado retorno. Nestas cartas, Deolinda pede que Sidónio cuide de seus pais e que lhes dê alguns presentes. Na relação entre o casal e o médico estabelece-se negociações onde cada um pretende obter proveitosas condições em defesa de seus interesses imediatos...
Defendendo seus desejos e interesses os personagens tramam-se e inventam-se em suposições do existir. Para receber atenção e presentes do estrangeiro, Bartolomeu e Dona Munda caligrafam falseadas cartas. Afinal, a vida de Bartolomeu caligrafara-se desde os tempos do namoro. O pedido de casamento, o dote, o noivado, tudo havia carecido da formalidade da escrita. Assim, desenvolvera devoção por qualquer papel escrito. A escrita lhe trazia lembranças e o nunca remediado descanso dos sonhos. Bartolomeu queria curar-se de sonhar.
Mas não eram apenas Dona Munda e Bartolomeu que desviavam verdades e escureciam segredos. Sidónio Rosa também era dono de interesses, mentiras e segredos. Ele “ainda” não era quem dizia ser. Ele não mentia, nem falsificava escrituras, era a própria mentira. Solitário e sem regresso estava mesmo era a desacontecer.
À medida que avancei na sinuosa narrativa atravessei fronteiras e adentrei nos territórios de outras leituras. Afinal, não é a leitura um exercício do desacontecer? Na poesia O Leitor*, Rilke escreve que ao baixar seu rosto para o livro, nem sequer a mãe (do leitor) estaria segura de que aquele que ler seja seu filho. Pois, ao ler, o leitor mergulha em sua própria sombra e alheio às horas que passam não se assegura do quanto se desvaneceu. Mas quando bruscamente levanta os olhos da página, seus olhos, são olhos dadivosos que carrega sobre si os aconteceres do livro.
No brusco movimento de tirar os olhos do livro, ele se depara com um mundo pleno e pronto. Seus traços que antes da leitura estavam ordenados ficaram alterados para sempre. É isso que Mia Couto faz com seus leitores, altera seus traços. Desordena-os para sempre! Porque sua escrita não se faz do ordenado e previsível, mas de ruídos, silêncios, cortes, pausas, dúvidas, escuros, embriagues, entorpecimentos, ausências e principalmente de incertezas.



*Poema de Rilke intitulado The Leser – o leitor pertence ao livro A outra parte dos novos poemas publicado em 1908. 

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